A Clodomir Santos de Morais - Altair Sales Barbosa.
Foto feira de são Manoel
Seu
Nhandu era um senhor esguio, pernas compridas e tez morena clara. Ninguém
sabia ao certo sua moradia. Era um andarilho dos gerais. Nada se ouvia de
sua boca a não ser, vez em quando, um lapso de humm... humm...! Percorria época
sim, época não as feiras animadas, que existiam nos pequenos povoados
daqueles sertões de dentro. Sempre carregava um velho e surrado alforje,
no qual colocava alguns presentes que ganhava dos feirantes: farinha, rapadura,
sal, arroz e até beijuzinho de tapioca. Às costas trazia um saco de estopa com
alguma coisa volumosa, leve e disforme, que despertava em todos certa
curiosidade. Não fazia mal a ninguém. Sempre tranquilo, andava com olhar
aguçado reparando tudo que via; às vezes se admirava com uma ou outra
coisa, e, com muita atenção e sinal de respeito, ouvia a cantiga dos
cantadores. Seu semblante só mudava quando pressentia o som de uma rabeca.
Ficava parado ao lado das rodas de pessoas que conversavam e trocavam opiniões
sobre assuntos variados. Parecia se inteirar dos noticiários. Mas nunca
dizia nada, nem pedia as coisas, o agrado vinha de graça, porque todos
gostavam dele. Agradecia com gesto singular e por isso todos pensavam tratar-se
de um ser que não possuía a propriedade da voz. Nunca pronunciou uma só
palavra. Quando a feira ia chegando nos finalmente, ele tomava um rumo
qualquer e partia, ficava às vezes até três meses sem voltar naquele
local. No outro fim de semana, lá estava ele na feira de outro
povoado, carregando o mesmo tipo de comportamento. No final, sumia
novamente. Ninguém sabe para onde ia. Curioso é que, em todos os
lugares que aparecia, era conhecido pelo codinome de “Seu Nhandu”,
certamente apelidado pelos feirantes. A alcunha de Nhandu deveria
ser pelo porte esguio, semelhante
ao da ema, ave conhecida pelos geraiseiros por este nome. Certa ocasião, Seu Nhandu desapareceu por
muito tempo das feiras, cerca de três anos, mais ou menos. Todos sentiram
sua ausência. E não faltaram comentários sobre o paradeiro. Uns
perguntavam “será que ainda é vivente?”; outros atreviam a dizer que onça
o comeu. E, assim, por esses caminhos situados entre adivinhação e
lamentação, o povo das feiras desenhava o destino de Seu Nhandu.
Um
belo dia, era sábado, não faz tanto tempo assim, quando as chuvas de
outubro ainda não haviam dado o ar da graça e os riachos já estavam
secos e o povo, meio atônito, se agonizava na feira de Santo Antônio
das Águas Puras para se remediar do pouco que encontrava. Naquele
momento, uma figura esguia, maltrapilha como sempre e com um saco de
estopa às costas aponta na ladeira do areião. O povo meio que surpreso e estupefato,
não teve dúvida: - É o Seu Nhandu. E à medida que se aproximava da
feira, todo aquele povo, num gesto simbólico, parecia reverenciá-lo.
Seu Nhandu, como sempre, chegou sereno, mas dessa vez estava sem os
alforjes e dizem que alguém o notou angustiado. Foi então que ele, num gesto
educado e calmo, pegou um banquinho de madeira e dirigindo-se ao centro da
feira, assim se expressou: “Hoje tenho uma história para lhes contar”.Um
misto de comoção e surpresa tomou conta do povaréu, pois todos achavam que ele
era mudo. Foi então que ele se pôs a falar: - Povo de Santo Antônio, meus
irmãos, fiquei muito tempo longe de vocês, senti a falta de cada um como
se sente a falta de um ente querido. Senti também tamanha saudade, que às vezes
meus olhos não suportavam a quantidade de águas e eu chorava. Meu nome é
Antônio e não Nhandu como vocês carinhosamente me chamam. Nas feiras dos
povoados por onde andei, percebi no ar uma grande curiosidade sobre o
conteúdo que eu carregava no saco de estopa. Hoje vou revelar a vocês. São
sementes de tingui, conhecidas em outras localidades como timbó, hoje as deixo
para vocês. Nesses quase três anos de ausência, pude percorrer vários cantos
desse imenso gerais. Presenciei coisas estarrecedoras.
Quando
eu era mais jovem, gostava de ficar muito tempo à beira dos rios
para ver a piracema da manjuba. Ficava dias. E me perguntava de onde
vinha tanto peixe. Na espreita ao lado, vibrava quando surubins e
dourados, esganados como sempre, se atiravam sobre o cardume. Gostava
de visitar as aguadas, as lagoas que se formavam ao longo dos rios,
recheadas de peixes. E, também, descansar de barriga para cima à
sombra de um pequizeiro onde inutilmente tentava contar o número dos
bandos das aves de arribação. O sabor gelatinoso dos puçás e o agridoce
vinho do buriti criavam a sensação de que eu estaria entrando no
sétimo céu de Allah, descrito pelo profeta no livro do Alcorão. Quase
entrava em delírio quando algum morador desses muitos ranchos de buritis
dos gerais me oferecia um copo de lata recheado com café de fedegoso
adoçado com rapadura.
Pois
sim, meus irmãos! Nesses três anos que me ausentei de vocês saí quase que
como numa missão para rever esses locais. O resultado dessas visitas veio
como um saco de desilusão, tal qual o que carreguei a vida toda, recheado
de tingui. Nada das minhas lembranças existe mais, as águas, as
piracemas, as lagoas, os pequizeiros, os ranchos de buritis, todos queimados. Aliás,
no último pelo qual passei ainda se ouvia o estalar das brasas.
Pensei,
meu Deus o que terá acontecido? Foi aí que recordei das profecias do velho
João-Cego, que morava lá pras bandas do Tabuleiro da Conceição e sempre gostava
de repetir: “Vocês mais jovens tomem cuidado, porque chegará um dia em que
gente estranha vai pisar neste lugar dizendo para todos bem assim: “Quero terra”. “Quero água”. E, para conseguir esses bens,
usará de meios escusos, perigosos e enganadores, que eles escondem atrás
de uma botija como se esta fosse do bem. Uma vez instalados, roubarão
tudo que é seu, tudo que você ama e construiu, roubarão a vida de vocês
que, no fundo, se confunde com a vida dos rios e dos gerais. Eu vim aqui
hoje até vocês, para lhes suplicar duas coisas: Espalhem essas notícias e
nunca deixem que os forasteiros ou seus mandantes lhes roubem a alma e
tirem de vocês a capacidade de sonhar. “Dizendo assim, com uma voz forte e
sonora, pronunciou a frase latina:” E ordem
hábitos et actus nostros in via nostra
de pendet!” Depois mansamente desceu do
banco, colocou-o no local onde o pegou e seguiu mundo afora no rumo do
areião. O povo, atônito, não sabia o que fazer, nem o que dizer, um silêncio fundo
tomou conta do lugar. Ninguém deu um pio. Quando todos acordaram de
seu estado quase letárgico e procuraram pelo senhor Antônio ou Seu Nhandu,
este já havia sumido. Só se avistou no centro da feira um monte de sementes
secas de Tingui.
* Tradução da frase latina:
"O rumo dessa estrada dependerá de
nossas atitudes e de nossas ações
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